Já me tinham dito que você costuma ser chamado de "pequeno profeta"! Contaram-me que, no acampamento, você previu coisas as mais diversas para os soldados: quantos filhos vão ter, em que batalha vão encontrar a glória ou a morte... - Gostaria de acreditar que tal visão do futuro existisse mesmo! Se os generais fossem profetas, quantos fracassos seriam evitados!
- Houve um general que foi também profeta - retrucou Shahin, mansamente. - Seu nome era Maomé.
- Eu também li o Alcorão, meu amigo - disse Napoleão, ainda sorrindo. - Mas ele lutava pela glória de Alá. Nós, pobres franceses, lutamos apenas pela glória da França.
- São aqueles que lutam apenas por sua própria glória os que devem ter cautela.- insistiu Charlot.
Napoleão encaro-o, já sem sorrir. Os oficiais, atrás deles cochichavam entre si. O rosto do general ficou carregado de uma emoção que ele se esforçou para controlar.
- Não admito que uma criança me insulte - disse, baixo e com raiva.
[...]
Quando se foram, ainda relutantes, Charlot tomou a mão do amigo e perguntou, pensativo:
- Shahin, por que o general Bonaparte ficou zangado com o que eu disse? Foi tudo verdade.
Shahin demorou um pouco para encontrar a resposta.Mas, depois de uma longa pausa, traçou uma comparação:
- Imagine-se numa floresta escura, onde não pudesse ver nada e tivesse por única companhia uma coruja capaz de enxergar muito melhor na escuridão. A visão que você tem é como a dela: é capaz de ver o que está à frente, enquanto os outros esbarram na escuridão. Se você fosse como eles, não ficaria com medo, também?
- Pode ser - admitiu o menino. - Mas eu nunca ficaria com raiva da coruja se ela me avisasse que estava para cair num buraco!
Antes de responder, Shahin olhou-o por instantes com a sombra de um raro sorriso tomando conta de seus lábios:
- Possuir algo que os outros não têm é difícil e, frequentemente, perigoso. Às vezes, convém deixá-los no escuro.