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Mirdad fala aos peregrinos acerca do dia da videira e liberta a Arca de um peso morto
Mirda: Eis aqui, Mirdad, a vide cuja safra ainda não foi colhida, cujo sangue ainda não foi bebido.
Mirdad está encarregado com sua colheita, mas os ceifeiros - ah! - estão ocupados em outras vinhas.
E Mirdad está sufocando com uma superabundância de sangue, mas os portadores das canecas e os bebedores estão muito embriagados com outros vinhos.
Homens do arado, da enxada e do podão, eu abençôo vossos arados, vossas enxadas e vossos podões.
Que tendes arado, capinado e podado até hoje?
Tendes arado as tristes terras baldias de vossa alma, onde vem crescendo toda a espécie de mato, havendo-se tornado assim em uma espessa floresta, onde terríveis feras e venenosas serpentes vivem e se multiplicam?
Tendes capinado e arrancado as raízes nocivas que se enrolam no escuro e estrangulam vossas raízes, destruindo vossa safra ainda em botão?
Ou tendes podado aqueles ramos de vós próprios que estão carcomidos por vermes ou ressecados pelo furioso ataque de parasitas?
Tendes aprendido bem a arar, capinar e podar vossas vinhas da terra; mas a vinha que não é sa terra, que sois vós, essa jaz tristemente abandonada e sem ter quem dela cuide.
Como será vão vosso trabalho, se não cuidardes dos vinhateiros antes de cuidardes da vinha.
Homens de mãos calosas! Abençôo vossos calos. Amigos do prumo e da régua; companheiros do malho e da bigorna; artistas do escopro e do serrote, como sois hábeis e competentes em todos os vossos ofícios!
Sabeis como encontrar o nível e a profundidade das coisas; mas vossa própria profundidade e vosso nível não sabeis achar.
Rapidamente, dais forma a um pedaço de ferro bruto com o malho e a bigorna; mas não sabeis dar forma ao homem bruto, usando o malho da vontade e a bigorna da Conpreensão, nem aprendestes, com a bigorna, a preciosa lição de receber pancadas sem reagir e sem devolvê-las a quem as deu.
Sois hábeis com o escopro e o serrote, tanto na pedra como na madeira; mas o homem grosseiro e cheio de imperfeições, vós não sabeis torná-lo suave e macio.
Como são inúteis vossas artes se não as aplicardes primeiramente aos artistas!
Homem que para obter lucro negociais com as dádivas de vossa Mãe-terra e os produtos das mãos de vossos semelhantes!
Abençôo as necessidades, as dádivas e os produtos, e também abençôoos negócios; mas o lucro em si, que em verdade é uma perda, não encontra benção em minha boca.
Quando, na funesta calada da noite, fazeis o balanço das atividades do dia, o que é que lançais como lucro, e o que é que lançais como perda? Lançais como lucro o dinheiro ganho acima e além do custo? Então, em verdade, foi inútil o dia que vendestes por uma soma de dinheiro, não importa quão grande, e foram perdidas para vós todas as infinitas riquezas desse dia em harmonia, paz e luz. Perdidos também seus incessantes chamados à liberdade; e perdido também o coração dos homens que ele vos ofereceu como presente, posto sobre as palmas de suas mãos.
Quando vosso maior interesse é a bolsa dos homens, como podeis encontrar o caminho para o seu coração? E se não encontrardes o caminho para o coração dos homens, como podereis atingir o coração de Deus? E se não atingires o coração de Deus, que vida tereis.
E se o que considerais lucro, em realidade é perda, que imensa perda é essa!
Em verdade, serão vãos todos os vossos negócios, se os lucros não forem computados em Amor e Compreensão.
Homens do certro e da coroa! É uma serpente o cetro na mão daquele que é muito rápido no ferir e vagaroso no aplicar os unguentos curativos; enquanto que, na mão que propicia o bálsamo do Amor, o cetro é um pára-rais que impede o infortúnio e a condenação.
Examinai bem as mãos.
Uma coroa de ouro, cravejada de brilhantes, rubis e safiras é muito pesada, triste e desjeitada em uma cabeça estufada de vanglória, ignorância e cobiça de poder sobre os homens. Sim, tal coroa sobre esse pedestal não passa de um cáustico escárnio de próprio pedestal. No entanto, uma coroa, das mais ricas pedras preciosas, envergonhar-se-ia se seu pouco valor para apoiar-se sobre a cabeça ornada pela aura da Compreensão e da vitória sobre si mesma.
Examinai bem a cabeça.
Quereis governar os homens? Aprendei primeiro a governar-vos a vós mesmos.
Como podereis governar bem, senão sendo bem autogovernados? Pode uma onda bravia, espumejante e impelida pelo vento, trazer paz e serenidade ao mar? Podem olhos lacrimejantes projetar um sorriso abençoado em um coração que chora? Pode a mão trêmula de medo ou de ódio conservar um navio em sua rota?
Os governantes dos homens são governados por homens, e oa homens estão cheios de tumultos, desordem e confusão. Tal qual o mar, estão expostos a todos os ventos do céu. Tal qual o mar, têm seus fluxos e refluxos de maré, parecendo, as vezes, que vão devastar a praia. Tal qual o mar, porém, suas profindezas são calmas e imunes às ventanias que encapelam a superfície.
Se quereis realmente governar os homens, penetrai no abismo de seu íntimo, pois os homens são mais do que ondas espumejantes. Para penetrardes nas profundezas dos homens, é preciso que tenhais penetrado em vossa própria profundeza. E para isso precisais abandonar o cetro e a coroa, para que as mãos estejam livres para sentir e a cabeça desembaraçada para pensar e refletir.
Vão é vosso governo, fora da lei estarão todas as vossas leis, e confusão será vossa ordem, se não, se não aprenderdes a governar o homem rebelde que há em vós, cuja a diversão predileta é brincar com cetros e coroas.
Homens do turíbulo e do Livro! Que é que queimas no incensório? Que ledes vós no Livro?
Queimais a seiva amarela e aromática que flui de certas plantas e endureceno ao ar? Mas isso é comprado e vendido nos mercados públicos, e o que se compra por algumas moedas basta para importunar bastante qualquer deus.
Pensais que o aroma do incenso pode abafar a fedentina do ódio, da inveja e da ambição; dos olhos trapaceiros, da língua que prevarica, das mãos lascivas; da descrença que se apresenta como fé, da sordidez terrena que toca trombeta, dizendo-se um abençoado paraíso?
Mais agradável às narinas de vosso Deus seria o cheiro de todas estas coisas, se morressem por recusardes alimentá-las e as cremásseis, uma a uma, no coração, espalhando as cinzas aos quatro ventos do céu.
Que é que queimais no turíbulo? Propiciações, louvores e súplicas?
Um deus iracundo merece ser abandonado a sua ira, para que rebente. Um deus que tem sede de louvores merece ser abandonado, para que morra de sua própria sede. Um deus de coração duro deve morrer da dureza de seu coração.
Deus não quer que lhe queimeis incenso, mas que queimeis vossa ira e vosso orgulho e a dureza de vosso coração, para que que possais ser como ele, livre e onipotente. Ele quer que vosso coração seja o incensório.
Que ledes vós no Livro? Ledes os mandamentos para serem inscritos a ouro nas paredes e cúpulas dos templos? Ou para serem inscritos, como verdades vivas, no coração?
Ledes as doutrinas para serem ensinadas dos púlpitos e zelosamente defendidas com lógica, artifícios de linguagem e, se necessário for, com dinheiro e o gume das espadas? Ouvledes a vida, que não é uma doutrina para ser ensinada e defendida, mas um caminho a ser trilhado com a vontade de obter a Libertação, no templo ou fora dele, de noite ou de dia, nos lugares baixos tantos quanto nos lugares altos? E enquanto não estiverdes nesse caminho e tiverdes certeza de seu fim, como tereis a ousadia de convidar outros a trilhá-lo?
Ou ledes tabelas, mapas e listas de preços no Livro, mostrando aos homens quanto de céu pode-se comprar em troca de tanto ou quanti desta terra?
Trapaceiros e agentes de Sodoma! Quereis vender o Céu aos homens e tomar em pagamento o quinhão que eles possuem da terra. Quereis fazer da terra uma gehenna e estimulais os homens a fugir, enquanto agarrai-vos a ela. Por que não os fazeis vender sua parte no Céu por uma parte na terra?
Se houvésseis lido bem vosso Livro, mostraríeis aos homens como fazer da terra um céu, pois para aquele que tem um coração celeste, a terra é um céu, pois para aquele que tem um coração terreno, o Céu é uma terra.
Tirai os véus que cobrem o Céu no coração dos homens, removendo as obstruções que há entre eles e seus irmãos na terra, entre o homem e todas as criaturas, entre o homem e Deus. Mas para isso, teríeis de possuir, vós mesmos, um coração celeste.
O Céu não é um jardim florido que se possa comprar ou alugar, mas é um estado de ser que se atinge na terra ou em qualquer ponto do infinito Universo. Por que curvar o pescoço e alongar a vista para o Além?
Nem é o Inferno um fogo devorador, ao qual se possa escapar com muitas orações, ou queimando incenso; mS, sendo um estado do coração, experimenta-se o Inferno tão bem aqui na terra como em qualquer outro ponto da imansidade infinita.
Para onde fugiríeis de um fogo cujo combustível é o coração?
É vã a procura do Céu, e em vão se foge do Inferno enquanto o homem está preso a sua sombra. Tanto o Céu como o Inferno são estados de ser inerentes à dualidade. Exceto quando o homem se torna uma só mente, um só coração e um só corpo; exceto quando ele já não tiver sombra e possuir uma só vontade, terá sempre um pé no Céu e outro no Inferno. E isso é, verdadeiramente, o Inferno.
Sim, é mais do que o Inferno ter asas de luz e pés de chumbo; ser elevado pela esperança e arrastado para baixo pelo desespero; desferrar as velas pela fé impávida, e vê-las ferradas pelo pafor da dúvida.
Nenhum céu é céu que para os outros seja inferno. Nenhum inferno é inferno que para os outros seja céu. E como o inferno de alguns é frequentente o céu de outros, e o céu de alguns é muitas vezes o inferno de outros, então Céu e Inferno não constituem estados passageiros e contraditórios, mas sim estágios pelos quais ambos têm de passar, em sua longa peregrinação para a liberdade.
Peregrinos da vida sagrada! Mirdad não tem nenhum céu para vender ou conceder àqueles que queiram ser virtuosos. Nenhum inferno para servir de espantalho aos que queiram ser maus.
A não ser que vossa virtude seja vosso próprio espantalho, dormirá por um dia e acordará na primeira ocasião favorável.
Mirdad não tem céus nem infernos para oferecer-vos, mas oferece-vos a Sagrada Compreensão, que vos elevará muito acoma do fogo de qualquer inferno e do esplendor de qualquer céu. Não é com as mãos , porém com o coração, que tereis de receber este presente, pois para recebê-lo deve estar o coração desembaraçado de qualquer outro desejo e vontade, salvo o desejo e a vontade de compreender.
Não sois estrangeiros na terra, nem a terra é para vós madrasta. Sois o coração de seu coração e a espinha dorsal de sua espinha dorsal. Ela sente-se satisfeita em sustentar-vos sobre seu forte e longo dorso. Por que insistis em sustentá-la sobre vossos fracos peitos, gemendo, arfando e sentindo que vos falta ar?
Os úberes da terra estão manando leite e mel. Por que deixais que ambos azedem com vossa cobiça, tomando mais do que necessitais?
Serena e sossegada é a face da terra. Por que a agitais e a encrespais com a amargura da luta e do medo?
A terra é uma perfeita unidade. Por que persistis em desmembrá-la com espadas e fronteiras?
Obediente e despreocupada é a terra. Por que sois vós cheios de preocupação e de insubordinação?
No entanto, vós sois mais duradouros do que a terra, o sol e todas as esferas dos céus. Tudo isso passará, porém vós não passareis. Por que haveis de tremer como folhas ao vento?
Se nada mais pode fazer-vos sentir vossa unidade com o Universo, a terra sozinha deveria fazê-lo. No entanto, a terra é somente um espelho no qual vossa sombra se reflete. É o espelho mais do que o que ele reflete? É a sombra produzida por um homem mais do que o homem?
Esfregai os olhos e despertai. Vós sois mais do que a terra. Vosso destino é mais do que viver, e morrer, e fenecer alimento abundante para as sempre famintas goelas da morte. Vosso destino é vir a ser livre do viver e do morrer, do Céu e do Inferno e de todos os opostos inerentes à dualidade. Vosso destino é serdes videiras frutíferas nas eternas e frutíferas vinhas de Deus.
Como o ramo vivo de uma videira viva, ao ser enterrado na terra, desenvolve raízes e afinal se torna uma vide independente, que produz uvas como sua mãe, à qual continua ligada, assim será o homem o ramo vivo da videira divina, quando for enterrado no solo de sua divindade, tornando-se eternamente uno com Deus.
Deve o homem ser enterrado vivo a fim de despertar para vida? Sim, sem dúvida, sim. Se não morrerdes para a dualidade da vida e da morte, não podereis despertar para a unidade do ser.
Se não fordes alimentados com as uvas do Amor, não sereis saciados com o vinho da Compreensão, e, se não vos embriagardes com o vinho da Compreensão, não vos tornareis sóbrios com o beijo da liberdade.
Não é Amor que comeis, quando comeis o fruto da videira terretre. Comeis uma fome maior para aplacar uma fome menor.
Não é Compreensão que bebeis, quando bebeis o sangue da videira terrestre. Bebeis um curto esquecimento sa dor, o qual logo cessa, e a dor torna-se duas vezes mais aguda. Fugis de uma personalidade aborrecida somente para tornar a encontrá-la ao virar a esquina.
As uvas que Mirdad vos oferece não estão sujeitas ao mofo e à podridão. Uma vez saciados com elas, estareis saciados para sempre. O vinho que delas ele destilou para vós é demasiado forte para os lábios que temem ser queimados, mas estimulante para o coração que quer embriagar-se com o esquecimento do eu para a eternidade.
Há entre vós alguém que esteja faminto por minhas uvas?
Que venha para frente com sua cesta.
Há alguém que tenha sede de meu sangue? Que traga seu copo.
Mirdad está curvado ao peso de sua safra e sufocado com a abundância da seiva.
O dia da vide sagrada era um dia de esquecimento de si mesmo; um dia de embriagado de Amor e banhado na luz da Compreensão; um dia de êxtase no compasso rítmico das asas da liberdade; um dia de eliminação das barreiras e de cada um mergulhar no todo e todos em um. Mas, ai! Em que se tornou hoje esse dia?
Tornou-sem em uma semana de mórbida auto-afirmação, em que a ambição sórdida negocia com ambição sórdida; em que a escravidão se diverte com a escravidão, e a ignorância corrompe a ignorância.
A própria Arca, que era antigamente uma destilaria de fé, de amor e de liberdade, tornou-se agora em um gigantesco lagar e em um monstruoso mercado. Ela recebe o produto de vossas vinhas e vo-lo torna a vender sob a forma de vinho estupefaciente. Do trabalho de vossas mãos, ela forja as algemas para vossos pulsos. O suor de vossa testa, ela o transforma em brasas para marcar, a fogo, vossa testa.
Para longe, para muito longe da rota que lhe havia sido delineada, desviou-se a Arca; mas agora seu leme está no ângulo certo. Precisava ser liberada de todo o peso morto para que pudesse retomar sua rota com facilidade e segurança.
Em vista disso, todos os presentes serão devovidos a seus doadores, e todos os débitos de seus devedores serão cancelados. A Arca nada recebe senão se Deus, e Deus não quer que ninguém deva, nem mesmo a ele.
Assim ensinei eu a Noé.
Assim eu agora vos ensino.