terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O Livro de Mirdad 28

Lectorium Rosicrucianum

28 

O príncipe de Bethar aparece com Shamadam no Ninho da Águia 
O coloquio entre o príncipe e Mirdad acerca da guerra e paz 
Mirdad é aprisionado por Shamadam  

Naronda: Logo que o Mestre acabara de proferir aquelas palavras, e enquanto principiávamos a meditar sobre elas ouvimos pesados passos fora do Ninho da Águia, acompanhados de palavras desconexas e abafadas. Subitamente, dois soldados gigantescos, armados até os dentes, surgiram à entrada da gruta e puseram-se de guarda, um de cada lado, com as espadas desembainhadas reluzindo ao sol. A seguir, chegou um jovem príncipe, em uniforme de gala, seguido timidamente por Shamadam e, atrás dele, mais dois soldados.

O príncipe era um dos mais poderosos e famosos potentados das Montanhas Alvas. Parou por um momento à entrada e observou cuidadosamente o rosto das pessoas presentes. Depois, fixando o olhar no Mestre, curvou-se e disse:
Príncipe: Salvo, santo homem! Viemos prestar homenagem ao grande Mirdad, cuja fama viajou para além destas montanhas e chegou a nossa distante capital.

Mirdad: A fama viaja em um carro veloz no estrangeiro. Aqui ela coxeia e anda de muletas. O Superior é minha testemunha disso. Não confieis, ó príncipe, nos caprichos da fama.

Príncipe: No entanto, bem doces são os caprichos, e doce é para alguém ter seu nome impresso nos lábios dos homens.

Mirdad: É como ter o nome escrito nas areias da praia, tê-lo impresso nos lábos dos homens. Os ventos e as marés o apagarão das areias. Um espirro o soprará para fora dos lábios. Se não quiserdes ser espirrado fora pelos homens, não imprimais vosso nome em seus lábios, mas gravai-o a fogo em seu coração. 

Príncipe: Fechado com muitos cadeados está o coração dos homens.

Mirdad: Podem ser muitos os cadeados, mas a chave é uma só. 

Príncipe: E tendes essa chave? Necessito muito dela. 
Mirdad: Vós também a tendes.

Príncipe: Ai de mim! Vós me avaliais por um preço mais alto do que realmente valho. Há muito que procuro a chave para o coração de meu vizinho e em lugar algum a encontro. Ele é um poderoso príncipe e está inclinado a fazer-me guerra. Sou forçado a levantar os braços contra ele, embora deseje a paz. Não vos deixeis iludir por meu diadema e por minhas roupas cobertas de pedras preciosas, Mestre. Nelas não encontro a chave que busco. 

Mirdad: Elas escondem a chave, porém não a contém. Embaraçam vossos passos, estorvam vossas mãos e distraem vossos olhos, tornando assim vossa busca improfícua.

Príncipe: Que quer o Mestre dizer com isso? Devo abandonar meu diadema e minhas vestes para encontrar a chave do coração do meu vizinho?

Mirdad: Para conservar essas coisas, tereis de perder vosso vizinho. Para conservar o vizinho, tereis de perdê-las; e perder o vizinho é perder a si mesmo.

Príncipe: Não compraria, por esse preço exorbitante, a amizade de meu vizinho.

Mirdad: Não vos compraríeis por esse preço tão vil?

Príncipe: Comprar-me a mim? Não sou prisioneiro para ter de pagar resgate e, além disso, tenho um exército bem pago e bem armado para proteger-me. Meu vizinho não pode gabar-se de ter um melhor. 

Mirdad: Ser prisioneiro de um homem ou de alguma coisa é simplesmente a prisão mais amarga que há de aturar-se. Ser prisioneiro de um exército de homens e de um ror de coisas é o desterro sem resgate. Depender de algo é estar preso a isto. Dependei, pois, somente de Deus. Ser prisioneiro de Deus é, realmente, ser livre.

Príncipe: Devo, pois, deixar a mim mesmo, meu trono e meus súditos sem proteção?

Mirdad: Não deveis ficar desprotegido. 
Príncipe: Portanto devo manter um exército.
Mirdad: Por isso deveis dissolver vosso exército.
Príncipe: Mas meu vizinho imediatamente invadiria meu reino.

Mirdad: Vosso reino ele poderia invadir, mas a vós, nenhum homem pode engolir. Duas prisões fundidas em uma não constituem um pequenino lar para a liberdade. Regogizai-vos, se algum homem expulsar-vos de vossa prisão; não invejeis, porém, o homem que vier fechar-se dentro de vossa prisão.

Príncipe: Sou descendente de uma raça famosa por seu valor no campo de batalha. Jamais forçamos outros povos à guerra. Quando, porém, nos forçam a ela, jamais nos esquivamose jamais abandonamos o campo, a não ser com nossas bandeiras drapejando sobre os cadáveres do inimigo. Dais-me maus conselhos, senhor, ao dizer-me que devo deixar meu vizinho fazer o que quiser.

Mirdad: Não dissestes que quereis paz?
Príncipe: Sim, quero-a.
Mirdad: Então não luteis.
Príncipe: Mas meu vizinho insiste em lutar contra mim, e eu preciso lutar contra ele, para que possa haver paz entre nós.

Mirdad: Quereis matar vosso vizinho para poderdes viver em paz com ele! Que estranho espetáculo! Não há mérito em viver em paz com os mortos. É, porém, grande virtude viver em paz com os vivos. Se vos empenhais em uma guerra contra qualquer homem vivo ou contra qualquer coisa, cujos gostos ou interesses possam, às vezes, colidir com os vossos, então deveis também empenhar-vos em uma guerra contra Deus, que permite que estas coisas sejam assim; e deveis declarar guerra ao Universo, pois há nele inúmeras coisas que pertubam vossa mente, incomodam vosso coração e, queirais ou não queirais, intrometem-se em vossa vida.

Príncipe: Que devo fazer, se desejo paz com meu vizinho, e ele quer lutar?

Mirdad: Lutai!

Príncipe: Agora me aconselhais acertadamente.

Mirdad: Sim, lutai! Não, porém, com vosso vizinho. Lutai com tudo aquilo que vos leva, a vós e a vosso vizinho, à luta. Por que deseja vosso vizinho lutar convosco? Será por que tendes os olhos azuis, e ele, castanhos? Será por que vós sonhais com anjos, e ele, com demônios? Ou será por que o amais e considerais tudo que é vosso como sendo dele?

São vossas vestimentas, ó príncipe, vosso trono, vossa riqueza, vossa glória e as coisas de que sois prisioneiro que fazem vosso vizinho querer lutar concosco.

Quereis vencê-lo sem levantar uma só lança contra ele? Quereis detê-lo em sua marcha contra vós? Então declarai guerra a estas coisas. Quando a tiverdes conquistado, libertando vossa alma dessas muletas; quando as tiverdes lançado ao monte de lixo, talvez vosso vizinho suspenda sua marcha e embainhe sua espada, dizendo, de si para si: "Se estas coisas valessem uma guerra, meu vizinho não as teria lançado ao monturo".  
 
Se vosso vizinho perseverar em seu propósito, se, em sua loucura, carregar para si o monturo, alegrai-vos porvos haverdes livrado de carga tão pestilenta e apiedai-vos sa sorte de vosso vizinho.

Príncipe: Que dizeis de minha honra, qie vale muito mais do que meus bens?

Mirdad: A única honra do homem é ser homem - imagem e semelhança de Deus. Todas as outras são desonras.
Todas as honras conferidas pelos homens são facilmente destruídas pelos homens. Uma honra escrita pela espada é facilmente apagada pela espada. Nenhuma honra, ó príncipe, vale uma lança enferrujada, menos ainda uma lágrima que arde, e ainda menos uma gota de sangue.

Prímcipe: E a liberdade - minha liberdade e a de meu povo- não vale o grande sacrifício?

Mirdad: A verdadeira liberdade vale o sacrifício do eu. As armas de vosso vizinho não podem tomá-la; vossas próprias armas não podem ganhá-la nem defendê-la, e o campo de batalha é, para ela, a septura.

A verdadeira liberdade é ganha ou perdida no coração contra o próprio coração. Desarmai o coração de toda a esperança, medo e desejos vãos, que tornam vosso mundo uma prisão sufocante, e achá-lo-eis mais amplo do que o Universo; andareis por esse Universo à vontade, e nada será para vós  empecilho. 

Esta é a única batalha que vale a pena travar. Começai esta guerra e já não tereis tempo para outras, que se tornariam, para vós, em bestialidade aborrecida e armadilhas diabólicas, as quais tencionam desviar-vos a mente, e diminuir-vos o vigor, e, assim, far-vos-iam perder a grande guerra contra vós mesmo, mesmo a qual é , realmente, uma guerra santa. Quem ganha essa guerra conquista a glória imorredoura, mas a vitória, em qualquer outra guerra, é pior do que a derrota total. É esse o horror das guerras dos homens, em que tanto o vencedor como o vencido enfrentam a derrota.

Quereis a paz? Não procureis em documentos palavrosos; não tenteis gravá-la nem mesmo nas rochas.

Isto porque a pena que rabisca "paz", também, com a mesma facilidade, pode rabiscar "guerra"; e o escopro que grava "tenhamos paz" pode, facilmente, gravar "tenhamos guerra". E, além disso, o papel e a rocha, a pena e o escopro, logo são atacados pela traça, pela podridão, pela ferrugem e por toda a alquimia que transmuta os elementos. Não acontece assim com o coração do homem, que está fora do tempo, pois esse coração é o reduto da Sagrada Compreensão. 

Logo que a Compreensão se revela, está alcançada a vitória, e a paz estabelece-se no coração de uma vez para sempre. O coração compreensivo está sempre em paz, mesmo no meio de um mundo enlouquecido pela guerra.

O coração ignorante é uma coração dividido em dois. O coração dividido em dois forma um mundo dividido em dois. Um mundo dividido em dois cria sempre a luta e a guerra.

Por outro lado, o coração compreensivo é um coração uno. Um coração uni faz um mundo uno, e o mundo uno é um mundo de paz, pois são necessários dois para que haja uma guerra.

Eis por que vos aconselho a entrar em guerra com vosso coração a fim de o fazerdes uno. O prêmio da vitória é a paz eterna.

Quando puderdes ver, óh príncipe, em qualquer pedra um trono, e em qualquer caverna um castelo, então o sol alegra-se-á em vosso trono, e as constelações, vosso castelo. Quando um mal-me-quer do campo for para vós a mais linda medalha, e um verme qualquer, vosso professor, então as estrelas alegrar-se-ão em pousar em vosso peito, e a terra estará pronta para ver vosso púlpito.

Quando puderdes governar o coração, que vos importará quem seja aquele que governa o corpo? Quando o Universo todo for vosso, que vos importará quem seja aquele que domina esta ou aquela parte da terra?

Príncipe: Vossas palavras são sedutoras, mas a mim me parece que a guerra é uma lei da Natureza. Não estão até os próprios peixes do mar em guerra constante? Não é o fraco presa do forte? Eu não quero ser presa de ninguém!

Mirdad: O que vos parece guerra não é senão o modo de a Natureza alimentar-se e propagar-se. O fraco é alimento do forte, tanto quanto o forte é alimento do fraco. Quem é forte e quem é fraco na Natureza?

Só a Natureza é forte; tudo o mais é fraco e obedece à vontade da Natureza, navegando, humildemente, pelas correntezas da morte.

Só o imortal pode ser classificado como forte. E o homem é imortal, óh príncipe. Sim, mais podoroso do que a Natureza é o homem. Ele come do coração da carne da Natureza para elevar-se acima da autopropagação.

Deixai que os homens que queiram justificar seus desejos impuros, pelos instintos puros dos animais, se denominem, a si mesmos, ursos selvagens, ou lobos, ou chacais, ou o que quiserem, mas não permitais que achincalhem o nobre nome do homem.

Crede em Mirdad, óh príncipe, e ficai em paz.

Príncipe: O Superior disse-me que Mirdad é bem versado nos mistérios da magia; eu gostaria que manifestasse alguns de seus poderes, para que ei pudesse crer nele.

Mirdad: Se revelar Deus no homem é magia, então Mirdad é um mago. Quereis uma prova e uma manifestação da minha  magia?
Aqui está: eu sou a prova e a manifestação. Ide avante. Fazei o trabalho que viestes executar aqui.

Príncipe: Bem, adivinhastes que tenho outro trabalho a fazer, que não o de divertir-me com vossas loucuras. O príncipe de Bethar é um mago de outra espécie e agora vai fazer uma demosntração de sua arte.

(A seus homens) Trazei as algemas e prendei as mãos e os pés deste deus-homem ou homem-deus. Mostraremos a ele e a seus companheiros de que espécie é nossa magia.

Naronda: Como animais de rapina, os quatro soldados caíram sobre Mestre  e, rapidamente, principiaram a algemar-lhe mãos e pés. Por um momento os sete ficaram paralisados em seus bancos, sem saber como interpretar o que se passava diante deles - se era uma farsa ou para valer. Micayon e Zamora foram os primeiros a compreender que terrível situação era real. Saltaram sobre os soldados, como dois leões enfurecidos, e tê-los-iam derrubado, se não se tivesse feito ouvir a voz serena  e segura do Mestre.

Mirdad: Deixai-os executar sua arte, impetuoso Micayon. Deixai-os fazer o que desejam, bom Zamora . As algemas não assustam Mirdad, como não assustou o Abismo Negro. Deixai qie Shamadam se regozije em remendar sua autoridade com a do príncipe de Bethar. O remendo despedaçará a ambos.

Micayon: Como podemos ficar impassíveis, quando nosso Mestre está sendo algemado como se fosse um criminoso?

Mirdad: Não fiqueis ansiosos por mim. Ficai em paz. O mesmo farão a vós algum dia; mas isso prejudicará a eles e não a vós.

Príncipe: Assim será feito a todo o velhado e charlatão que tiver a ousadia de fingir que tem autoridade e direito estabelecidos. 

Este santo homem (apontando para Shamadam) é de direito o chefe desta comunidade, e sua palavra deve ser lei para todos. A Arca sagrada, cuja generosidade desfrutais, está sob minha proteção. Meus olhos vigilantes pesquisam seu destino; meu braço poderoso está estendido por sobre seu teto e suas propriedades; minha espada decepará a mão que tocá-las com má intenção. Que todos o saibam e tenham cuidado.

(Novamente a seus homens) Tirai para fora este patife. Sua perigosa doutrina já quase arruinou a Arca. Logo arruinará nosso reino e a terra, se deixarmos que siga seu perigoso curso. Vamos fazer com que doravante ele a pregue às sombrias paredes da prisão de Bethar. Fora com ele!

Naronda: Os soldados levaram o Mestre para fora, seguidos, orgulhosamente, pelo príncipe e por Shamadam. Os sere caminhavam atrás desta horrível procissão, seguindo o Mestre com os olhos, os lábios selados pela dor, o coração transbordante de lágrimas.

O Mestre caminhava, com passo firme e sereno e com a cabeça levantada. Tendo-se distanciado um pouco, olhou para trás e disse: 

Mirdad: Ficai firmes com Mirdad. Não vos deixarei enquanto não lançar minha Arca e colocar-vos no comando. 

Naronda: E por muito tempo depos, estas palavras ainda nos soavam aos ouvidos, acompanhadas do pesado retinir das correntes.