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Mirdad alivia Zamora de seu segredo e fala do homem e da mulher, do casamento, e do celibato daquele que se libertou
Mirdad: Naronda, minha fiel memória! Que te dizem estes lírios?
Naronda: Nada que eu possa ouvir, meu Mestre.
Mirdad: Eu ouço-os dizer: "Amamos Naronda e com satisfação lhe oferecemos nossa fragrante alma como prova de nosso amor". Naronda, meu perseverante coração! Que tr dizem as águas deste tanque?
Naronda: Nada que eu possa ouvir, meu Mestre.
Mirdad: Eu ouço-as dizer: "Amamos Naronda, por isso saciamos-lhe a sede de seus amados lírios". Naronda, meu olho vigilante! Que te diz este dia, com todas as coisas que ele, carinhosamente, embala em seus braços ensolarados?
Naronda: Nada que eu possa ouvir, meu Mestre.
Mirdad: Eu ouço-o dizer: "Eu amo Naronda, por isso embalo-o, carinhosamente, em meus braços ensolarados, juntamente com o resto de minha amada família".
Com todas estas coisas para amar e ser por elas amado, não tem Naronda a vida bastante cheia, sem lugar para que sonhos vãos e pensamentos fúteis nela façam ninho e se ponham a chocar?
Em verdade vos digo que o ser humano é o bem-amado do Universo. Todas as coisas alegram-se em mimá-lo, mas raros são os seres humanos que não ficam enfatuados com esses mimos, e mais raros ainda aqueles que não mordem a mão que os acaricia.
Para quem não é enfatuado, até uma picada de serpente é um beijo de amor; mas para o enfatuado, até um beijo de amor é uma picada de serpente. Não é assim, Zamora?
Naronda: Assim ia Mestre dizendo, enquanto ele, Zamora e eu, em uma tarde ensolarada, regávamos alguns canteiros de flores no jardim da Arca.
Zamora, que durante o tempo todo se conservou consideravelmente diatraído, abatido e deprimido, foi como que despertando pela pergunta do Mestre.
Zamora: Como tudo o que o Mestre diz é verdade, isso deve ser verdadeiro.
Mirdad: Não é verdade em teu caso, Zamora? Não foste tu envenenado por muitos beijos de amor? Não estás agora torturado pela recordação de teu beijo envenenado?
Zamora: (Atirando-se aos pés do Mestre, enquanto lágrimas lhe brotavam dos olhos) Oh, Mestre! Que vã infantilidade a minha, ou de qualquer homem, em tentar esconder de vossos olhos , mesmo nas profundezas do coração, um segredo!
Mirdad: (Enquanto fazia Zamora levantar-se) Como é infantil e vão tentar escondê-lo até mesmo destes lírios!
Zamora: Sei que meu coração ainda não é puro, porque os sonhos que tive esta noite foram impuros.
Hoje vou esvaziar o coração. Vou pô-lo nu diante de vós, meu Mestre; diante de Naronda; diante destes lírios e das minhocas que rastejam pelas suas raízes. Preciso depor a carga de um segredo que me pesa na alma. Que esta brisa a carregue para todas as criaturas deste mundo.
Em minha mocidade amei uma jovem. Era mais linda que a estrela da manhã. Seu nome era mais doce a minha língua do que o sono a minhas pálpebras. Quando nos falastes da oração e da corrente sanguínea, eu fui o primeiro a beber a substância curativa de vossas palavras, pois o amor de Hoglah - era esse seu nome - dirigia-me o sangue, e eu sabia o que um sangue bem comandado podia fazer.
Com o amor de Hoglah a eternidade era minha. Eu usava-a como um anel de casamento; e a própria morte eu vestia como se fosse uma cota de malha. Eu sentia-me mais idoso do que todos os ontens e mais jovem do que o último amanhã que nascerá. Meus braços sustentavam os céus, e meus pés impeliam a terra, enquanto em meu coração brilhavam inúmeros sóis.
Mas Hoglah morreu, e Zamora, a fênix flamejante, transformou-se em um monte de cinzas frias e sem vida, das quais nenhuma fênix renasceu. Zamora, o leão destemido, tornou-se um coelho assustadiço. Zamora, a coluna do céu, tornou-se nas miseráveis ruínas de um naufrágio, encalhadas em uma lagoa de águas pútridas.
Procurei salvar o que pude de Zamora e parti para esta Arca, esperando enterrar-me vivo em suas recordações e sombras diluvianas. Tive a sorte de chegar aqui exatamente quando um companheiro havia partido deste mundo e flui admitido.
Durante quinze anos, os companheiros desta Arca viram e ouviram Zamora, jamais souberam ou ouviram. Pode ser que as velhas paredes e os sombrios corredores da Arca não o ignorem. Pode ser que as árvores, as flores e os pássaros deste jardim dele saibam algo, mas, certamente, as cordas de minha harpa poder-vos-ão contar muito mais, ó Mestre, a respeito de minha Hoglah do que eu próprio.
Exatamente quando vossas palavras principiam a aquecer a agitar as cinzas de Zamora, e percebo o nascimento de um novo Zamora, Hoglah visita-me em sonhos, faz me ferver o sangue e atira-me aos sombrios despenhadeiros da realidade atual - uma tocha queimada, um êxtase natimorto, um monte de cinzas sem vida.
Ah! Hoglah! Hoglah!
Perdoa-me, Mestre. Não posso reter as lágrimas. Que mais pode a carne ser, senão carne? Tende piedade de minha carne. Tende piedade de Zamora.
Mirdad: A própria piedade necessita de piedade. Mirdad não a tem. Mas Amor Mirdad tem em abundância por todas ad coisas, mesmo pela carne; e ainda mais pelo Espírito, que toma a forma grosseira da carne unicamente para nela suprir sua própria falta de forma; e o Amor de Mirdad levantará Zamora de suas cinzas e fará dele "um que se libertou".
"O que se libertou" - eis o que eu pego - o homem unificado e mestre se si mesmo. O homem que está aprisionado ao amor da mulher e a mulher que está aprisionada ao amor do homem são ambos incapazes de obter a preciosa coroa da liberdade, mas o homem e a mulher tornados um só pelo Amor, inseparáveis e indistinguíveis, estão realmente qualificados para o prêmio.
Não é o Amor o amor que subjuga o amante.
Não é o Amor o amor que se alimenta da carne e sangue.
Não é o Amor o amor que atrai a mulher para o homem, somente para colocarem no mundo mais homens e mais mulheres, e, assim, perpetuarem sua escravidão à carne.
"O que se libertou" - eis o que eu prego - o homem-fênix, que é demasiado livre para ser um macho e muito sublimado para ser uma fêmea.
Assim como nas esferas mais densas da vida o macho e a fêmea são um, assim são eles um nas esferas menos densas da vidas. O intervalo entre as duas não é mais do que um segmento na eternidade, dominado pela ilusão da dualidade. Aqueles que não podem ver nem para diante nem para trás julgam que este segmento da eternidade é a própria eternidade. Agarram-se a ilusão da dualidade, como se fosse esta o núcleo e a essência da própria vida, ignorando que a regra. Da vida é a unidade.
A dualidade é uma etapa no tempo. Como procede da unidade, à unidadd se dirige. Quanto mais rapidamente atravesardes esta etapa, mais cedo abraçareis vossa liberdade.
Que são o homem e a mulher senão o homem uno, inconsciente de sua unidade, dividido em dois para sorver o fel da dualidade, para que almeje o néctar da unidade e, almejando-o, procure-o com ânsia e, procurando-o, encontre-o e possua-o, consciente de que ele ultrapassa a liberdade?
Deixai que o cavalo relinche para a égua e a gazela chame pelo cervo. A própria Natureza estimula-os a isso, e abençoa-os, e aprova-os, pois não são conscientes de nenhum destino superior além do da auto-reprodução.
Deixai o homem e a mulher que ainda não estão muito longe do cavalo e da égua, do cervo e da gazela, buscarem-se mutuamente nas trevas da separação sa carne. Deixai-os misturar a licensiosidade da alcova com a licença do nó matrimonial. Deixai-os alegrar-se com a fertilidade dos corpos e a fecundidade do ventre. Deixai-os propagar a espécie. A própria Natureza alegra-se em ser a oficiante de suas núpcias e sua parteira; e a Natureza preparará para eles leitos de rosas, sem esquecer-se dos espinhos.
Mas os homens e as mulheres precisam realizar sua união ainda enquanto estiverem na carne; não pela comunhão da carne, mas pela vontade de libertarem-se da carne e de todos os impedimentos que esta coloca em seu caminho para a perfeita unidade e para a Sagrada Compreensão.
Frequentemente ouvis os homens falar em "natureza humana", como se esta fosse um elemento rígido, bem medido, bem definido, exaustivamente explorado e firmemente limitado, por todos os lados, por algo que eles denominam sexo.
A natureza humano é satisfazer as paixões do sexo. Só o tentar pôr um freio a seus acessos turbulentos ou empregar meios para superar o sexo é, decididamente, ir contra a natureza humana e sofrer as conseqüências. Assim dizem os homens. Não deis ouvidos a essa tagarelice.
Muito complexo é o homem e imponderável sua natureza. Mui variados são seus talentos e inexaurível sua energia. Cuidado com aqueles que querem encerrá-lo entre muros.
A carne, sem dúvida, impõe ao homem um pesado tributo, mas ele paga-o somente durante certo tempo. Quem dentre vós quereria ser vassalo da carne por toda a eternidade?
Qual o vassalo que não sonha em sacudir dos ombros o jugo do príncipe que o oprime e, assim, libertar-se de pagar o tributo?
O homem não nasceu para ser vassalo, nem mesmo de sua natureza humana. O ser humano está sempre almejando libertar-se de toda e qualquer vassalagem e, certamente, possuirá a liberdade.
Que são os elos do sangue para aquele que deseja libertar-se? Uma cadeia que terá de ser quebrada com uma vontade. "O que se libertou" sente seu sangue relacionado com todo o sangue. Consequentemente, não está preso a nenhum.
Deixai a propagação da raça para aqueles que nada almejam. Os que almejam têm outra raça para propagar: a raça dos que se libertam.
A raça dos que se libertam não descende do ventre, ao contrário, ascende de corações celibatários cujo sangue é dirigido por uma vontade inflexível de se libertar.
Sei que vós, e muitos como nós, pelo mundo afora, têm feito votos de celibato. No entanto, longe estais se ser celibatários, como testifica o sonho de Zamora na noite passada.
Não é celibatário aquele que usa trajes eclesiásticos e se encerra por trás de grossas paredes e de reforçados portões de ferro. Muitos frades e muitas freiras são mais lascivos do que o mais lascivo dos homens e a mais lasciva das mulheres, embora possam jurar - sem mentir - que jamais hajam tido contato com a outra carne. Celibatários, quer estejam encerrados em mosteiros ou vagueiem nos mercados.
Venerai, meus companheiros, a mulher e santificai-a. Não no papel de mãe da raça, nem como esposa ou amante, porém como gêmea do homem e sua sócia, cota por cota, na longa fadiga e sofrimento da vida dualística, pois sem ela o homem não pode atravessar o segmento da dualidade. Somente nela ele encontrará sua unidade, e nele encontrará ela sua libertação da dualidade; e os gêmeos serão a seu tempo reunidos em um - o que se libertou, que não é nem masculino nem feminino: o homem perfeito.
"O que se libertou" - eis o que eu prego- o homem unificadoe mestre de si mesmo; e cada um de vós será "um dos que se libertaram" antes que Mirdad se retire dentre vós.
Zamora: Entristece-me o coração ouvir-vos falar em deixar-nos. Se chegar o dia em que vos procurarmos e não vos acharmos, Zamora porá fim a seu alento.
Mirdad: Tu podes querer muitas coisas, Zamora - podes querer todas as coisas, mas há uma coisa que não podes querer: pôr fim a tua vontade, que é a vontade da vida, que é a Vontade Total: pois a vida, que é a vontade da vida, que é não ser; nem pode o não-ser ter vontade. Não, nem mesmo Deus pode acabar com Zamora.
Quanto a eu deixar-vos, o dia certamente chegará em que me procurareis na carne e não me achareis, pois tenho trabalho a fazer em outros lugares, além do que estou fazendo nesta terra, e em nenhum lugar deixo meu trabalho por fazer. Alegra-vos, portanto. Mirdad não vos deixará enquanto não houver feito de vós os que se libertaram - homens unificados e perfeitos mestres de si mesmos.
Quando fordes mestres de vós próprios e houverdes atingido a unidade, então encontrareis Mirdad como constante morador no coração, e seu nome jamais se oxidará em vossa memória.
Assim ensinei eu a Noé.
Assim eu agora vos ensino.