terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O Livro de Mirdad 32

Lectorium Rosicrucianum

32

Acerca do pecado e da retirada dos aventais de folha de figueira


Mirdad: Já ouviste falar do pecado, e agirs deveis saber como o ser humano se tornou pecador.
E declarais - não sem mérito - que se o ser humano, a imagem e a semelhança de Deus, é pecador, então Deus mesmo deve ser a origem do Pecado. Existe aí uma armadilha para o desavisado; e eu não quero, companheiros, que sejais presos na armadilha. Por isso vou retirá-la de vosso caminho, para que possais retirá-la dos caminhos dos outros seres humanos.
Não há pecado em Deus, a não ser que consideremos pecado dar o sol algo de sua luz a uma vela. Nem há pecado no ser humano, a não ser que consideremos pecado queimar-se uma vela inteiramente no sol e assim juntar-se ao sol.

Há, porém, pecado na vela que se recusa a ceder sua luz e, quando se aplica o fósforo a seu pavio, amaldiçoa o fósforo e a mão que o segura. Há pecado na vela que tem vergonha de queimar-se no sol e, por isso, oculta-se do sol.

O ser humano não pecou por desobedecer à Lei, mas por querer encobrir sua ignorância da Lei.

Sim, há pecado no avental da folha de figueira.

Não lestes a história da queda do ser humano, tão simples e ingênua nas palavras, porém tão sublime e sutil el seu significado? Não lestes como o ser humano, recém-saído do seio de Deus, era como um deus recém-nascido - passivo, inerte, não-criador? Isto porque, embora dotado de todos os atributos da divindade, era, como todos os recém-nascidos, incapaz de conhecer e de exercitar suas infinitas capacidades e talentos.

Como uma semente solitária encerrada  belíssimo frasco, achava-se o ser no Jardim do Éden. A semente, eencerrada no frasco, permanecerá semente, e jamais as maravilhas que nela se acham encerradas debaixo da casca serão estimuladas para a vida e a luz, a não que seja escondida em um solo análogo a sua natureza e que a casca seja rompida.

O ser, porém, não possuía solo algum que lhe fosse análogo onde pudesse plantar-se e brotar.

Era uma face que jamais encontrara outra face na qual pudesse refletir-se. Era um ouvido humano que jamais ouvira outra voz humana. Era uma voz humana que jamais tivera eco em outra voz humana. Era um coração que batia solitário.

Solitário - tão inteiramente solitário - encontrava-se o ser, em meio a um mundo bem aparelhado e lançado a seu destino. Era um estranho para si mesmo; não tinha trabalho a executar nem plano a seguir. O Éden, para ele, era o que é para um recém-nascido um berço confortável - um estado de bem-aveturança passiva; uma incubadeira bem aparelhada.

A árvore do conhecimento do bem e do mal e a árvore da vida estavam, ambas, a seu alcance; ele, porém, não estendia a mão para colher e provar de seus frutos, pois seu paladar, seus pensamentos, seus desejos e até mesmo sua vida estavam ecerrados nele mesmo, esperando para serem vagarosamente libertados. E ele, por si mesmo, não podia libertá-los. Consequentemente, fez-se com que ele produzisse um auxiliar para si - uma mão que o ajudasse a desatar seus muitos envoltórios.

Onde melhor se poderia obter seu auxílio senão em seu próprio ser, tão rico devido a sua alta potência em divindade? 
Isto é muito significativo. 

Eva não é novo pó nem novo alento; mas o mesmo pó e o mesmo alento de Adão - ossos de seus ossos e carne de sua carne. Não surge outra criatura em cena; mas o mesmo Adão solitário é duplicado - um Adão masculino e um Adão feminino.

Assim, o rosto solitário e sem reflexo obtém uma companhia e um espelho; e o nome, sem eco em nenhuma voz humana, principia a reverberar, em doces estribilhos, acima e abaixo pas alamedas do Éden. O coração, cujo palpitar solitário era abafado em um peito solitário, principia a sentir seu pulso e a ouvir sua palpitação em um coração companheiro e em um peito companheiro.

Assim o aço, sem faíscas, encontra o silex que o fará emitir faíscas em abundância. Assim a vela, que não havia sido acesa, é acesa em ambas as pontas.

Uma é a vela, um é o pavio, e uma a luz, embora venha de ambas as pontas. Assim, a semente no frasco encontra o solo onde pode germinar e revelar seus mistérios.

Assim a unidade, inconsciente de si mesma, gerou a dualidade, para que, por meio da fricção e da oposição da dualidade, possa compreender sua unidade. Nisto também o ser é a fiel imagem e semelhança de Deus, pois Deus - a Consciência Original - projeta de si a Palavra, e tanto a Palavra como a Consciência são unificadas na Sagrada Compreensão.

Não é um castigo a dualidade, mas um processo inerente à natureza da unidade e necessário para o desenvolvimento de sua divindade. Como é infantil pensar de outro modo! Como é infantil acreditar que um processo tão maravilhoso possa terminar seu curso em três vintenas de anos mais dez, ou mesmo em três vintena de milhões de anos!

É tão pouco importante assim tornar-se um deus?
Será Deus um amo assim tão cruel e miserável que, tendo toda a eternidade para presentear, não concedesse ao homem mais do que o pequenino espaço de tempo de setenta anos para que este se unificasse e readiquirisse o Éden, inteiramente consciente de sua divindade e de sua unidade com Deus?

Longo é o curso da dualidade, e tolos são os que o medem com calendários. A eternidade não mede a revolução das estrelas.

Quando Adão, o passivo, o inerte, o não-criador, foi tornado dual, ele tornou-se ativo, cheio de movimento e caoaz de criar e procriar-se.

Qual foi o primeiro ato de Adão depoisde tornar-se dual? Foi comer da árvore do conhecimento do bem e do mal e, desse modo, fazer todo este mudo dual como ele. As coisas deixaram de ser como haviam sido - inocentes e indiferentes. Estas tornaram-se boas ou más, úteis ou prejudiciais, agradáveis ou desagradáveis; tornaram-se dois campos opostos, ao passo que antes eram um.

E a serpente que enganou Eva, para qie provasse o bem e o mal, não era a profunda voz ativa, embora inexperiente, da dualidade, estimulando-se para a ação e a experiência?

De modo algum é de admirar-se que Eva fosse a primeira a ouvir essa voz  e a ela obedecer. Eva era como se fosse a pedra de afiar, o instrumento destinado a tornar manifestos os poderes latentes de seu companheiro.

Não estivestes vós, já muitas vezes, a imaginar esta primeira mulher, nesta primeira história humana, caminhando, furtivamente, por entre as árvores do Éden, com os nervos à flor da pele, com o coração palpitando como o de um pássaro que caiu na armadilha, com os olhos a procurar por todos os lados se alguém a estava observando, com a água na boca e a mão trêmula estendida para a fruta tentadora? Não tendes suspendido a respiração, ao imaginardes que ela apanhou a fruta e fincou os dentes na polpa macia, para sentir-lhe momentaneamente a doçura, que teria de transformar-se em amargura eterna para ela e sua prole? Não tendes desejado, de todo o coração, que Deus paralisasse a audácia louca de Eva, aparecendo-lhe no momento exato em que ela estava para cometer aquela ação estouvada, e não depois, como ele o faz na lenda? E tendo ela cometido aquele ato, não tendes desejado que Adão tivesse a sabedoria e a coragem de abster-se de tornar-se seu cúmplice?

No entanto, nem Deus interveio, nem Adão se absteve. Isto porque Deus não queria que sua semelhança se lhe tornasse dessemelhante. Era sua vontade e seu plano que o ser caminhasse o longo caminho da dualidade a fim de desenvolver sua própria vontade, planejar e unificar-se pela Compreensão. Quanto a Adão, ele não poderia, mesmo que quisesse, rejeitar o fruto que lhe era oferecido por sua esposa. Era-lhe obrigatório comê-lo, simplesmente porque sua esposa havia comido dele, pois ambos eram uma carne, e cada qual era reponsável pelos atos do outro.

Indignou-se e irou-se Deus porque o ser comeu o fruto do bem e do mal? Deus o proibira. E o fez porque sabia que ser não podia deixar de comer, e ele queria que o ser comesse; queria também que o ser soubesse antecipadamente as consequências de comê-lo e tivesse a coragem de arcar com tais conseqüências. E o ser teve coragem. E o ser comeu. E o ser arcou com a conseqüência. 

A conseqüência foi a morte. Ao tornar-se ativamente dual pela vontade de Deus, morreu daí em diante para a unidade passiva. Logo, a morte não é um castigo, mas uma fase na vida inerente à dualidade. A natureza da dualidade é tornar todas as coisas duais e dar a tudo uma sombra. Assim Adão gerou uma sombra em Eva, e ambos geraram, para sua vida, uma sombra chamada morte; mas Adão e Eva, embora sombreados pela morte, continuam a ter uma vida sem sombras na vida de Deus.

A dualidade é uma fricção cosntante; e a fricção dá a ilusão de duas superfícies que se opõem, inclinadas à autodestruição. Em verdade, os opostos aparentes estão contemplando-se, preenchendo-se e trabalhando de mãos dadas por um só objetivo - a paz perfeita, a unidade e o equilíbrio da Sagrada Compreensão. A ilusão, porém, está enraizada nos sentidos e persiste enquanto estes persistem.

Eis por que Adão respondeu a Deus, qunado Deus o chamou, depois de seus olhos terem sido abertos: "Eu ouvi tua voz soar no jardim, e eu temi, porque eu estava nu, e eu escondi-me." Como também: "A mulher que me deste por companheira, ela deu-me do fruto da árvore, e eu o comi."

Eva não era mais do que carne e ossos de Adão. Pensai, porém, neste novo eu de Adão, o qual, depois de seus olhos terem sido abertos, principiou a ver-se como algo diferente, separado e independente de Eva, de Deus e de toda a criação de Deus.

Este eu era uma ilusão. Uma ilusão dos olhos recém-abertos era esta personalidade desligada de Deus. Não tinha substância nem realidade. Havia sido criada para que, após a sua morte, o ser pudesse conhecer o seu ser real, que é o ser de Deus. Este eu falso desaparecerá quando os olhos externos apagarem-se e o seu olho interno for iluminado. Embora isto deixasse Adão confuso, servia para estimular-lhe a mente e espicaçar-lhe a imaginação. Ter um eu que se possa considerar inteiramente pessoal - isso é verdadeiramente muito lisongeiro e tentador para o ser que não é consciente de nenhum eu.

E Adão foi tentado e lisonjeado por seu eu ilusório. Embora estivesse envergonhado dele, por ser muito irreal, ou muito nu, dele não queria separar-se; ao contrário, agarrava-se a ele de todo o coração e com toda a sua engenhosidade recém-nascida. Por isso costurou folhas de figueira e fez para si um avental, com que escondesse a nudez de sua personalidade, tentando conservar-se oculto da vista onipenetrante de Deus.

Desse modo o Éden, o estado de bem-aveturada inocência, a unicidade inconsciente de si mesma, caiu do homem dual, revestido de aventais de folhas de figueira; e espadas de fogo foram postas entre ele e a árvore da vida.

O homem saiu do Éden pelo portão duplo do bem e do mal; a ele voltará pelo portão singelo da Compreensão . Retirou-se dando as costas à árvore da vida ; voltará com o rosto voltado para essa árvore. Iniciou sua longa e penosa viagem, envergonhado de sua nudez, e tendo o cuidado de esconder sua vergonha; chegará ao fim de sua viagem com sua pureza sem aventais e o coração ufano de sua nudez.   

Isto, porém, não se dará enquanto o homem não seja, pelo pecado, libertado do pecado, pois o pecado será a própria ruína do pecado. E onde está o pecado senão no avental de folhas de figueira?

Sim, o pecado nada mais é do que a barreira que o ser coloca entre ele próprio e Deus - entre seu eu transitório e seu eu eterno.

A princípio, um punhado de folhas de figueira, essa barreira veio a tornar-se um poderoso baluarte. Desde o momento em que abandonou a inocência do Éden, o ser tem estado ocupadíssimo em reunir cada vez mais folhas de figueira e a costurar um sem número de aventais.

Os indolentes satisfazem-se em remendar os rasgões de seus aventais com os trapos abandonados por seus próximos mais trabalhadores; e cada remendo na indumentária do pecado é pecado, pois tende a perpetuar a vergonha, que foi o primeiro e pungente sentimento que o ser teve após separar-se de Deus. 

Está o ser fazendo algo para livrar-se desta vergonha?

Ah! Todo o seu esforço é vergonha sobre vergonha, aventais sobre aventais.

Que são as artes e a instrução do ser, senão folhas de figueira?

Seus impérios, nações, segregações raciais e religiões, na vereda da gerra, não são cultos de adoração à folha de figueira?

Seus códigos de certo e errado, de honra e desenra, de jusiça e injustiça; seus incontáveis credos sociais e suas convenções - que são, senão aventais de folhas de figueira?

Seu avaliar o inavaliável, e medir o imensurável, e padronizar o que está além do padronizável - não é tudo isso remendar a já ultra-remendada tanga?

Sua avidez pelos prazeres que eatão pejados de sofrimento; sua ambição pelas riquezas que empobrecem; sua sede pela mestria que subjuga; sua cobiça pela grandeza que achincalha - não são todas essas coisas aventais de folhas de figueira?

Nesta corrida patética para cobrir sua nudez, o ser vestiu um grande número de aventais que, no correr dos anos, agarraram-se-lhe tão fortemente à pele que ele já não distingue os acentais da pele. E o ser sente-se sufocado, e clama por quem o liberte de tantas peles. No entanto, em seu delírio, o ser tudo faz para ser libertado de sua carga, menos a única coisa quem em verdade pode aliviá-lo de sua carga, que seria atirar fora essa carga. Ele quer libertar-se de sua carga e agarra-se a ela com todas as suas forças. Deseja estar nu e, no entanto, mantém-se completamente vestido. 

É chegada a hora de despir-se, e eu vim para auxiliar-vos a lançar fora vossas peles desnecessárias - vossos aventais de folhas de figueira - para que assim possais também auxiliar a todos os que anseiam por ver-se livres dos seus. Eu só ensino como fazê-lo, mas cada qual terá de se livrar dos seus, por mais doloroso que lhe seja despir-se.

Não espereis por nenhum milagre que vos salve de vós próprios, nem receeis a dor; a Compreensão nua converterá vossa dor em um perene êxtase de alegria. 

Se vos enfrentardes  a vós próprios, na nudez da Compreensão, e, se Deus chamar-vos e perguntar: "Onde estais?" - não vos envergonheis, nem tentais, nem vos oculteis de Deus, mas, ao contrário, deveis permanecer firmes, sem receio e divinamente calmos, respondendo a Deus: 
"Eis me aqui, Deus - nossa alma, nosso ser, nosso único eu. Envergonhados, medrosos e sofrendo dores, caminhamos pela áspera e tortuosa vereda do bem e do mal, que tu nos apontastes na aurora do tempo. A grande nostalgia apressou nossos passos, e a fé sustentou nosso coração, e agora a Conpreensão libertou-nos de nossas cargas, curou nosas feridas e trouxe-nos de volta a tua santa presença, nus do bem e do mal, da vida e da morte; nus de todas as ilusões da dualidade, nus exceto do manto de vosso ser, que tudo envolve. Sem folhas de figueira para esconder nossa nudez, aqui estamos diante de ti, livres da vergonha, iluminados e sem temor. Vede, estamos unificados. Vede, nós vencemos."

E Deus vos abraçará, com infinito amor, e vos levará diretamente a sua árvore da vida. 

Assim ensinei eu a Noé.
Assim agora eu vos ensino.

Naronda: Também isso nos foi dito pelo Mestre à volta do braseiro.