quinta-feira, 7 de novembro de 2013

TERNURA - Vinicius de Moraes

Ternura
Vinicius de Moraes

Eu te peço perdão por te amar de repente  
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos  
Das horas que passei à sombra dos teus gestos  
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos  
Das noites que vivi acalentado  
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo  
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.  
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo  
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas  
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...  
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias  
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta  
E deixes que as mãos cálidas da noite 
encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.


Soneto do amor total

Vinicius de Moraes

Amo-te tanto, meu amor... não cante  

O humano coração com mais verdade...  
Amo-te como amigo e como amante  
Numa sempre diversa realidade   
Amo-te afim, de um calmo amor prestante,  
E te amo além, presente na saudade.  
Amo-te, enfim, com grande liberdade  
Dentro da eternidade e a cada instante.  
Amo-te como um bicho, simplesmente,  
De um amor sem mistério e sem virtude  
Com um desejo maciço e permanente.   
E de te amar assim muito e amiúde,  
É que um dia em teu corpo de repente  

Hei de morrer de amar mais do que pude. 


Soneto da hora final

Vinicius de Moraes

Será assim, amiga: um certo dia  

Estando nós a contemplar o poente  
Sentiremos no rosto, de repente  
O beijo leve de uma aragem fria.   
Tu me olharás silenciosamente  
E eu te olharei também, com nostalgia  
E partiremos, tontos de poesia  
Para a porta de treva aberta em frente.   
Ao transpor as fronteiras do Segredo  
Eu, calmo, te direi: - Não tenhas medo  
E tu, tranqüila, me dirás: - Sê forte.   
E como dois antigos namorados  
Noturnamente triste e enlaçados  

Nós entraremos nos jardins da morte.



Soneto de inspiração
Vinicius de Moraes

Não te amo como uma criança, nem  

Como um homem e nem como um mendigo  
Amo-te como se ama todo o bem  
Que o grande mal da vida traz consigo.   
Não é nem pela calma que me vem  
De amar, nem pela glória do perigo  
Que me vem de te amar, que te amo; digo  
Antes que por te amar não sou ninguém.   
Amo-te pelo que és, pequena e doce  
Pela infinita inércia que me trouxe  
A culpa é de te amar - soubesse eu ver   
Através da tua carne defendida  
Que sou triste demais para esta vida  

E que és pura demais para sofrer.


Amor
Vinicius de Moraes

Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca  

Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo  
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação?  
Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos  
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo  
Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto  
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos  
Fingir que hoje é domingo, vamos ver  
O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão?  
Vamos, amor, tomar thé na Cavé com madame de Sevignée  
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar  
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. S. do Parto?  
Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos  
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol  
Vamos, amor?  
Porque excessivamente grave é a vida.


Epitáfio
Vinicius de Moraes

Aqui jaz o Sol  
Que criou a aurora  
E deu a luz ao dia  
E apascentou a tarde   
O mágico pastor  
De mãos luminosas  
Que fecundou as rosas  
E as despetalou.   
Aqui jaz o Sol  
O andrógino meigo  
E violento, que   
Possuiu a forma  
De todas as mulheres  

E morreu no mar.


A esposa
Vinicius de Moraes

Às vezes, nessas noites frias e enevoadas  
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos  
Essa estranha visão de mulher calma  
Surgindo do vazio dos meus olhos parados  
Vem espiar minha imobilidade.   
E ela fica horas longas, horas silenciosas  
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto  
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.  
Nada diz, nada pensa, apenas olha - e o seu olhar é como a luz  
De uma estrela velada pela bruma.  
Nada diz. 
Olha apenas as minhas pálpebras que descem  
Mas que não vencem o olhar perdido longe.  
Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias  
Se sentir frias suas mãos.   
Quando a porta ranger e a cabecinha de criança  
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo  
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios  
Sorrindo de um sorriso misterioso  
E se irá num passo leve  
Após o beijo leve e roçagante...   
Eu só verei a porta que se vai fechando brandamente...  

Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei.