sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O Livro de Mirdad 30

Lectorium Rosicrucianum

30

O Mestre revela o sonho de Micayon

Naronda: Durante um longo período, antes e depois de o Mestre voltar de Bethar, observamos que Micayon se comportava como quem se achasse em dificuldades. Conserva-se à parte, quase todo o tempo, falando pouco, comendo pouco. E raramente saindo de sua cela. Não confiava nem a mim seu segredo.  Todos nós nos admirávamos de que o Mestre nada fizessse para suavizar-lhe a dor, conquanto o amasse muito.
Certa vez, o Mestre começou a discursar sobre a grande nostalgia.

Mirdad: Um homem certa vez sonhou. Eis como foi seu sonho:

Ele viu-se sobre a verde margem de um largo e profundo rio, cujas águas deslizavam silenciosamente. Na margem havia uma multidão de homens, mulheres e crianças de todas as idades e idiomas; todos eles tinham rodas de vários tamanhos e cores que rodavam incessantemente, para cima e para baixo, pela margem. As multidões estavam vestidas de cores festivas e ali estavam para divertir-se e festejar. O ruído alegre que faziam enchia o ar. Como se fosse um mar incansável, subiam e desciam, iam e voltavam.

Somente ele não estava vestido para a festa, pois nada sabia de festa alguma. Só ele não tinha roda alguma para rodar, e, por mais que apurasse os ouvidos, não conseguia entender uma só palavra do que dizia a multidão poliglota que fosse semelhante a seu próprio dialeto. Por mais que esforçasse a vista, não conseguia encontrar um único rosto que lhe fosse familiar. Além disto, a multidão, à medida que se acercava dele, lançava-lhe olhares significativos, como se estivesse a dizer: "Quem é esse indivíduo cômico?" Subitamente, porém, ele compreendeu que a festa não era dele e que era a ela inteiramente estranho; sentiu uma dor no coração.

Eis que ouviu um grande ruído que vinha da extremidade superior da margem e logo viu que a multidão se ajoelhava, cobria os olhos com as mãos e curvava a cabeça, abrindo alas e deixando no centro uma faixa estreita desimpedida e paralela ao rio. Só ele ficou de pé, no meio dessa faixa, sem saber o que fazer nem para que lado voltar-se.

Quando olhou para ver onde vinha o ruído, divisou um enorme touro que cuspindo fogo pela boca e lançando colunas de fumo pelas ventas, corria pela faixa com a velocidade de um raio. Aterrorizado, olhou para a festa enlouquecida e procurou uma saída, à esquerda e à direita, porém não conseguiu encontrá-la. Sentia-se preso ao solo e estava certo de não sobreviver.

Justamente no momento em que o touro chegava tão perto do homem que este já lhe sentia o fogo devorador e o fumo asfixiante, sentiu-se elevado no ar. O touro permanecia em terra, por baixo dele, atirando para cima mais fogo e fumo; mas ele elevava-se cada vez mais e, embora sentisse o calor do fogo e o fumo, começou a compreender que o touro já não podia fazer-lhe mal algum. E voltou-se para atravessar o rio.

Olhando para a verde margem viu o povo ainda ajoelhado como antes, e o touro atirando flechas em vez de fogo e fumaça. Ouvia o sibilar das flechas que passavam por perto dele, algumas furavam-lhe as roupas, mas nenhuma delas tocou-lhe a carne. Finalmente o touro, a multidão e o rio perderam-se de vista, e o homem continuou voando.

Passou, voando, por sobre uma gleba de terra ressecada, na qual não havia o menor sinal de vida. Afinal, desceu no sopé de uma alta e escarpada montanha desolada, na qual não havia uma só folha de capim, nem mesmo uma lagartixa ou formiga, e sentiu como se seu único rumo fosse montanha acima.

Por muito tempo procurou um caminho seguro para subir, mas a única via de acesso que encontrava era uma trilha, que mal se podia ver, e pela qual parecia que só cabras poderiam subir. Decidiu-se a seguir essa trilha.

Mal tinha ele caminhado uma vintena de jardas, percebeu, não longe, à esquerda, uma estrada larga e macia. Tão logo paroue se dispôs a abandonar a trilha, a estrada transformou-se em um rio humano. A metade dos entes humanos que o cumpunha subia com grande esforço, enquanto que a outra metade rolava pela encosta abaixo. Um número imenso de homens e mulheres lutava para subir e rolava para baixo, às cambalhotas, soltando gemidos e gritos que cortavam o coração.

O homem observou por algum tempo aquele pavoroso fenômeno e chegou à conclusão de que, em algum ponto daquela montanha, existia um enorme hospício, e os que vinham rolando eram alguns dos internos que haviam fugido. Continuou pela trilha sinuosa, caindo e levantando-se de novo de quando em quando, mas sempre progredindo rumo ao alto.

A certa altura, o rio humano secou, e seu leito desapareceu por completo. Mais uma vez o homem se encontrava só com a montanha sombria, e não havia um dedo estendido que lhe apontasse o caminho ou voz alguma que lhe estimulasse a coragem, que sentia enfraquecer, ou que reanimasse sua forças, que se estavam esvaindo, a não ser uma vaga fé de que seu curso apontava para o alto.

E lá oa ele, assim traçando com sangue seu caminho. Depois de muito esforço, chegou a um ponto em que a terra era macia e não havia pedras. Para sua indescritível alegria, viu alguns delicados tufos de capim, crescendo aqui e ali; e a grama era tão delicada, tão tenra, o solo tão aveludado, o ar tão perfumado e repousante, que se sentiu como se lhe houvessem roubado a última gota de energia. Relaxou os músculos e adormeceu.

Foi despertado pela mão de alguém que o tocava e por uma voz que lhe dizia: "Levanta-te! O pico da montanha está à vista, e a primavera aguarda-te lá em cima."

A mão e a voz eram de uma belíssima donzela - um ser paradisíaco - vestido roupa de ofuscante brancura. Amavelmente, tomou-o pela mão, e ele sentiu-se revigorado e invadido por extraordinário bem-estar. Realmente pôde ver o alto da montanhae sentir o aroma da primavera. Mal, porém, se pôs de pé para dar o primeiro passo, despertou do sonho.

Que faria Micayon se despertasse de um sonho como esse e encontrasse deitado em uma cama comum, encerrado entre quatro paredes comuns, porém com a imagem da donzela ainda a brilhar-lhe nos olhos, e sentindo ainda no coração a feagrante resplandecência do alto da montanha?

Micayon: (Como quem foi espicaçado)as esse sonhador sou eu, e esse foi o sonho que tive, inclusive a visão da donzela de branco e do alto da montanha. Isto vem-me perseguindo até hoje e não me dá sossego. Faz com que eu me sinta estranho a mim mesmo. Por causa disto, Micayon já não conhece Micayon.

No entanto, tive esse sonho logo depois que fostes levado para Bethar. Como podeis vir relatá-lo com todos os seus pormenores? Que espécie de homem sois, que até os sonhos dos homens são, para vós, um livro aberto?

Ah, que liberdade havia no pico daquela montanha! Ah, como era linda aquela donzela! Como tudo aqui é vulgar em comparação! Senti-me como se tivesse perdido a própria alma devido ao sonho; e somente no dia em vos vi, voltando de Bethar, senti que me voltava a alma e senti-me calmo e forte. Mas esta sensação tornou a abandonar-me, e tornei a ser separado de mim mesmo por um invisível cordão.

Salvai-me, ó meu grande companheiro. Estou consumindo-me por causa de uma visão.

Mirdad: Não sabes o que pedes, Micayon. Queres ser salvo de teu salvador?

Micayon: Quero ser poupado desta insuportável tortura se sentir-me tão sem lar em um mundo que se sente tão confortável em casa. Gostaria de estar no alto da montanha com aquela jovem.

Mirdad: Regozija-te, porque teu coração se tornou presa de uma grande nostalgia, pois essa é a promessa irrevogável de que encontrarás tua palátria e teu lar, e que estarás no alto da montanha com a jovem.

Abimar: Por favor, contai-nos mais alguma coisa sobre esta nostalgia. Quais são os sintomas pelos quais podemos reconhecê-la?