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A verdade deve ser pregada a todos ou somente a uns poucos escolhidos?
Mirdad revela o segredo de seu desaparecimento na véspera do dia da videira e fala da falsa autoridade
Naronda: muito tempo após a festa, quando dela só restava a memória na mente dos sete, achavam-se estes reunidos em volta do Mestre no Ninho da Águia. O Mestre estava em silêncio, e os companheiros relembravam os memoráveis acontecimentos daquele dia. Alguns maravilhavam-se da explosão de entusiasmo com que a multidão recebeu as palavras do Mestre. Outros comentavam o comportamento estranho e incomoreensível de Shamadam, no momento em que centenas de documentos das dívidas não resgatadas foram retirados da tesouraria da Arca e publicamente destruídos, bem como centenas de bilhas e barris de vinho, retirados das adegas e dados de graça, e muitos presentes valiosos devolvidos a seus doadores; pois ele não se opôs, dw modo algum, como nós esperávamos que fizesse, mas ovservava tudo aquilo imóvel e em silêncio, enquanto lágrimas corriam-lhe pela face.
Bennoon observou que, embora a multidão o aclamasse até ficar rouca, não era devido às palavras do Mestre, mas devido aos débitos cancelados e aos presentes devolvidos.
Chegou mesmo a, suavemente, censurar o Mestre, por desperdiçar o fôlego com aquela multidão, que nenhum prazer mais elevado buscava senão o de comer, bebe e alegrar-se. A verdade, disse, não deveria ser pregada indiscriminadamente a todos, mas uns poucos escolhidos.
Então falou o Mestre e disse:
Midas: Vosso fôlego solto ao vento, certamente, encontrará asilo em algum coração. Não procureis saber a quem pertence o coração. Cuidai apenas de que o alento seja puro.
Vossa palavra procurará e encontrará certamente algum ouvido. Não pergunteis de quem é o ouvido. Cuidai somente de que a palavra seja uma mensageira legítima da liberdade.
Vosso pensamento silencioso certamente moverá alguma língua a falar. Não pergunteis de quem é a língua. Verificai, somente, se o pensamento está cheio de amorosa Compreensão.
Não penseis que algum esforço possa ser desperdiçado. Algumas sementes ficam enterradas por muitos anos, mas, rapidamente, brotam, quando estimuladas pelo alento da primeira estação favorável.
A semente da Verdade está em todos os homens e em todas as coisas. Vossa tarefa não é semear a Verdade, mas preparar a estação favorável para que a semente possa brotar.
Todas as coisas são possíveis na eternidade. Não vos desiludais, portanto, da libertação de quem quer que seja, mas pregai a mensagem da liberdade a todos com a mesma fé e o mesmo zelo - ao que não anseia e ao que anseia por ela, pois aquele que não anseia, certamente virá a ansiar, e os que agora não têm asas, um dia estenderão as suas ao sol e voarão aos inacessíveis páramos do céu.
Micaster: Põe-nos tristes o fato de que até hoje, muito embora repetidas vezes lhe tenhamos perguntado, o Mestre ainda não nos haja revelado o segredo de seu misterioso desaparecimento na véspera do dia da vide. Não seremos merecedores de sua confiança?
Mirdad: Quem quer que mereça meu amor certamente merece minha confiança. É a confiança mais do que o Amor, Micaster? Não vos estou dando, incessantemente, de meu coração?
Se não vos falei dessa circunstância desagradável, foi porque estava dando a Shamadam tempo para que se arrependessse. Foi ele que, com o auxílio de dois estranhos, me levou, à força, para fora deste Ninho da Águia e me atirou no Abismo Negro. Infeliz Shamadam! Jamais poderia sonhar que o Abismo Negro receberia Mirdad com as mãos de seda e lhe forneceria escadas mágicas para que ele voltasse ao pico.
Naronda: Ao ouvirmos isso, todos nós levamos um choque e ficamos estarrecidos. Ninguém ousava perguntar ao Mestre como havia saído incólume daquilo que a todos parecia uma perdição certa. Ficamos em silêncio por algum tempo.
Himbal: Por que Shamadam persegue nosso Mestre, enquanto nosso Mestre Shamadam?
Mirdad: Não é a mim que Shamadam persegue. Shamadam persegue Shamadam.
Dai aos cegos uma semelhança de autoridade, e eles arrancarão os olhos de todos os que vêem, até mesmo os olhos daqueles que trabalharam duramente para fazer com que eles vejam.
Dai ao escravo, durante um só dia, o poder de fazer sua vontade, e ele transformará o mundo em um mundo de escravos. Os primeiros a quem ele flagelará e algemará serão os que trabalharam incessantemente para libertá-lo.
Toda e qualquer autoridade deste mundo é falsa. Por isso ela tine as esporas, e brande a espada, e cavalga seus corcéis, com espalhafatosa pompa e cerimônias reluzentes, para que ninguém possa perceber a falsidade que há em seu coração. Seu trono cambaleante esta apoiado em canhões e lanças. Sua alma, repleta de vaidade, está enfeitada com amuletos que inspiram medo e emblemas de necromancia, para que olhos curiosos não descubram sua miséria.
Essa autoridade, além de ser cega, é maldição para o homem que anseia por exercê-la, pois tenta manter-se a todo o custo, mesmo ao pavoroso custo de destruir o próprio homem, os que aceitam sua autoridade bem como os que a ela se opõem.
Devido a sua cobiça pela autoridade, os homens estão em constante inquietação. Os que exercem autoridade estão constantemente lutando para mantê-la. Os que não a têm não cessam de lutar para subtraí-la das mãos dos que a exercem. Entrementes, o Homem, o Deus enfaixado, é pisoteado pelos pés e pelos cascos dos cavalos e abandonado no campo de batalha, esquecido, sem socorro, e sem ter quem dele se apiede.
Tão renhida é a luta e tão enlouquecidos pelo sangue são os que lutam, que ninguém pára, a fim de levantar a máscara da noiva espúria e expor à vista de todos sua monstruosa feiúra.
Acreditai, ó monges, que nenhuma autoridade vale um piscar de olhos a não ser a da Sagrada Compreensão, que não tem preço. Para alcançá-la, nenhum sacrifício é excessivo. Uma vez conseguida, permanecerá convosco até o fim dos tempos e dará vossas palavras maior poder do que aquele de que possam desfrutar todos os exércitos do mundo e abençoará vossas ações com maiores benefícios do que todas as autoridades, em conjunto, poderiam sonhar em trazer ao mundo.
Isto porque a Compreensão é seu próprio escudo; sua poderosa arma é o Amor. Não persegue nem tiraniza, mas cai como o orvalho, suavemente, sorr o árido coração humano, tanto para os que rejeitam suas bênçãos, como para os que com ela se saciam; pois, consciente de sua força interna, jamais recorre à força externa e, não sendo presa do medo, não usa da intimidação como arma com que tente impor-se a qualquer ente humano.
O mundo é pobre - ah, paupérrimo - de Compreensão. E por isso tenta esconder sua pobreza com o véu da falsa autoridade; e a falsa autoridade faz aliança defensiva e ofensiva com o falso poder, pondo-se ambos a comandar o medo. E o medo destrói a ambos.
Não tem havido sempre o costume de os fracos aliarem-se para proteger sua fraqueza? Assim as autoridades deste mundo e a força bruta trabalham de mãos dadas, sob o chicote do medo, pagando diariamente seu imposto à ignorância em guerras, em sangue e em lágrimas. E a ignorância sorri benignamente para tudo isso e diz: "Muito bem!"
"Muito bem!", disse Shamadam a Shamadam ao atirar Mirdad ao abismo. Mal sabia Shamadam, porém, que, tendo-me atirado ao Abismo, havia atirado a si mesmo, e não a mim. Isto porque o abismo não pode reter Mirdad; enquanto Shamadam tem de lutar com todas as forças e por muito tempo, a fim de subir pelas suas encostas escuras e escorregadias.
A autoridade deste mundo é como que um chocalho. Deixai os que ainda são bebês na Compreensão divertir-se com ele, mas vós não precisais impor-vos a homem algum. Aquilo que é imposto pela força, mais cedo ou mais tarde será deposto pela força.
Não busqueis autoridade sobre a vida dos homens; sobre ela, só a Vontade Total é senhora. Nem busqueis autoridade sobre os bens dos homens, pois os homens estão acorrentados a seus bens, tanto como a sua vida; por isso desconfiam daqueles que interferem em suas correntes e odeiam-nos. Procurai, porém, um caminho para o coração dos homens por intermédio do Amor e d Compreensão e, uma vez ali instalados, melhor podereis trabalhar para libertá-los de suas correntes.
Assim o Amor guiará vossas mãos, enquanto a Compreensão segura a lanterna.