sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O Livro de Mirdad

Lectorium Rosicrucianum 

33

Acerca da noite - a cantora incomparável

Naronda: Como o exilado sente saudades de seu lar, assim tínhamos nós saudades do Ninho da Águia, que os ventos gelados e as tempestades de neve haviam tornado inacessível durante todo o inverno.

O Mestre escolheu uma noite de primavera, cujos olhos  eram suaves e brilhantes, cujo alento era cálido e perfumado, cujo coração palpitava rápido e desperto, para levar-nos ao Ninho da Águia.

As oito pedras planas que nos serviam de bancos ainda estavam dispostas exatamente no mesmo semicírculo, tal como as havíamos deixado no dia em que o Mestre fora levado para Bethar. Era evidente que ninguém visitara o Ninho da Águia desde esse dia. Cada um de nós tomou seu lugar costumeiro e ali ficou à espera de que o Mestre falasse. Ele, porém, não abria a boca. Até mesmo a lua cheia, que nos mirava para desejar-nos boas-vindas, parecia presa aos lábios do Mestre.

As cachoeiras da montanha, despenhando-se de pedra em pedra, enchiam a noite com suas turbulentas melodias. De quando em quando, o pio sinistro de uma coruja ou a canção rascante de algum grilo chegava a nossos ouvidos.

Durante muito tempo permanecemos em silêncio, antes que o Mestre levantasse a cabeça e, abrindo os olhos semicerrados, principiasse a falar-nos: 

Mirdad: Neste silêncio que agora reina, Mirdad gostaria que ouvísseis as canções da noite. Prestai ouvidos ao coro da noite, que é, realmente, uma cantora incomparável. 

Dos mais escuros esconderijos do passado, dos mais luminosos castelos do futuro, dos pináculos dos céus e das profundidades da terra, as vozes da noite desprendem-se e voam até os mais recônditos lugares do Universo. Em poderosas ondas elas rolam e giram em volta de vossos ouvidos. Descarregai completamente os ouvidos parabque possais ouvi-las bem.

Aquilo que o dia alvoroçada e despreocupadamente apaga, a noite restaura com sua extraordinária magia. Não se escondem a lua e as estrelas donofuscamento do dia? Aquilo que o dia afoga em sua fantasiosa simulação, a noite exalça em suas extáticas canções. Até mesmo os sonhos das plantas ampliam o coro da noite:

Prestai ouvidos às esferas 
Que cantam pelo céu afora. 
Ouvi suas cantigas de ninar
Para o nenê gigante que dorme
Em seu berço de areias movediças,
Para o rei dos mendigos vestido de trapos
Para o corisco agrilhoado -
Para o deus envolto em faixas.

Escutai a terra, que ao mesmo tempo dá à luz,
Amamenta, cria, faz casar e enterra.
Escutai as feras rondando na floresta,
Urrando, uivando, rasgando, rasgadas;
Répteis, rastejando pela sua trilha;
Insetos, zunindo suas canções místicas;
Pássaros, ensaiando, em seus sonhos,
Contos dos prados, cantigas dos regatos;
Árvores e arbustos e tudo o que respira
Sorvendo a vida na taça da morte.

Do alto da montanha e do vale;
Do deserto e do mar;
Do ar e debaixo da relva,
Lança-se o desafio ao Deus velado pelo tempo.

Escutai as mães do mundo - 
Como choram, como lamentam-se;
E os pais do mundo - 
Como gemem, como afligem-se.
Escutai como seus filhos correm 
Para o canhão e do canhão,
Censurando Deus e amaldiçoando o destino,
Fingindo amor e respirando ódio,
Bebendo devoção e suando medo,
Semeando sorrisos e colhendo lágrimas,
Estimulando com seu sangue vermelho
A fúria do dilúvio que se prepara.

Escutai como seu estômago encolhe,
E suas pálpebras inchadas piscam,
E seus dedos mirrados, às apalpadelas,
Vão buscando a carcaça da esperança;
E seu coração distende-se e rebenta
De monte em monte e de pilha em pilha.

Escutai os motores satânicos zumbir,
E as grandes cidades ruir,
E as poderosas cidadelas 
Dobrar os sinos de seu próprio funeral,
E os monumentos do passado
Cair nos atoleiros de lama e sangue.

Escutai as orações do justo soando, 
Alegremente, junto com os gritos de luxúria,
E o balbuciar aem arte da criança
Em rapsódia com o perverso tagarelar:
O sorriso envergonhado da donzela
Gorgeando com a astúcia da prostituta;
E o êxtase do valente,
Cantarolando as maquinações do velhaco. 

Em todas as tendas e choças
De todas as tribos e clãs,
As trombetas noturnas executam o hino
De guerra do homem.

Mas a noite, a feiticeira, funde as canções,
Os desafios, os hinos de guerra e tudo o mais, 
Em canção demasiado sutil para o ouvido - 
Canção tão grandiosa, tão infinita no compasso, 
De tão profudo tom, tão melodioso coro,
Que até o coro e a sinfonia dos anjos,
Em comparação, não passam de ruído e murmúrio.
Essa é a canção de triunfo do ser  liberto.

As montanhas cochilando no regaço da noite;
Os desertos reminiscentes com suas dunas;
Os vales sonâmbulos, as estrelas errantes,
Os habitantes
Nas cidades dos mortos,
A Santa Triunidade e a Vontade Total saúdam 
E aclamam o ser que se está libertando.

Felizes são os que ouvem e compreendem.
Felizes são os que,
Ao encontrarem-se a sós com a noite,
Sentem-se calmos, profundos
E vastos como a própria noite;
Cujas faces não são feridas, no escuro,
Pelos males que cometeram no escuro;
Cujos olhos não estão cheios das lágrimas
Que fizeram seus semelhantes verter; 
Cujas mãos não coçam de más intenções e de ganância;
Cujos ouvidos não são assediados
Pelos silvos de sua luxúria;
Cujo pensar não é mordido por seus pensamentos;
Cujo coração não é morada
De todas as preocupações que surgem,
Ininterruptamente, de todos os cantos do tempo; 
Cujos receios não cavam túneis em seu cérebro;
Que podem dizer corajosamente à noite:

"Revela-nos ao dia",
E dizer ao dia: 
"Revela-nos à noite".

Sim, três vezes felizes são os que,
Quando estão a sós com a noite,
Sentem-se à vontade, tão em paz, 
Tão infinitos como a noite:
Para eles, somente, é que a noite
Canta a canção do homem que se libertou.

Se quiserdes enfrentar a calúnia do dia com a cabeça erguida e os olhos abertos, fazei por conquistar logo a amizade da noite.

Sede amigos da noite. Lavai completamente, o coração, no próprio sangue da vida e colocai-o mo coragão da noite. Confiai vossos ardentes desejos ao seio da noite e imolai a seus pés vossas ambições, exceto a ambição de serdes livres mediante a Sagrada Compreensão.

Sereis então invulneráveis a todos oa dardos do dia, e a noite testemunhará por vós, perante os homens, de que realmente sois os que se libertaram.

Embora os dias febricitantes 
Atirem-vos para um lado e para o outro,
E noites sem estrelas envolvam-vos
Em tua melancolia,
E sejais atirados à s encruzilhadas do mundo,
Em que não há rastros ou sinais
Para indicar o caminho;
Não temais nenhum homem ou circunstância,
Nem tenhais a menor sombra de dúvida 
De que os dias e as noites,
Bem como os homens e as coisas,
Mais cedo ou mais tarde vos procurarão  
Para pedir-vos, humildemente, que os comandeis,
Pois tereis conquistado a confiança da noite.

E quem conquista a confiança da noite
Pode, facilmente, comandar o dia vindouro. 

Dai ouvidos ao coração da noite, pois nele bate o coração do ser liberto.

Se eu tivesse lágrimas, oferecê-las-ia esta noite a todas as estrelas que cintilam e a todo o grãozinho de pó; a todo o regato rumorejante e a toda a cigarra cantora; a toda violeta que irradia no ar sua alma olorosa; a todo vento que sopra; a toda a montanha e a todo o vale; a toda a árvore e a toda a folha de capim; a toda a paz e a toda a beleza desta noite.
Derramaria minhas lágrimas diante delas, como apologia pela ingratidão e pela ignorância selvagem dos homens.

Os homens, escravos do nefasto "vintém", estão ocupados no serviço de seu senhor, excessivamente ocupados para que possam dar atenção a qualquer voz ou vontade que não seja sua própria voz ou sua própria vontade.

E pavoroso é o negócio do senhor dos homens. É transformar o mundo em um matadouro em que eles são os magarefes e o gado a ser abatido. Assim, embebedados pelo sangue, os homens matam os homens, na ilusão de que o que mata herda a parte dos que são mortos, em todas as riquezas da terra e da munificência dos céus.

Infelizes ingênuos! Desde quando um lobo torna-se cordeiro por ter matado outro lobo? Desde quando a serpente torna-se pomba por ter esmagado e devorado outras serpentes? Desde quando um homem, por matar outro homem, só herda suas alegrias, sem herdar também suas tristezas? Desde quando um ouvido, furando outros ouvidos, torna-se mais afinado para com as harmonias da vida, ou um olho torna-se mais sensível às emanações da beleza em furando outros olhos?

Haverá um homem ou grupo de homens que possa exaurir as bênçãos de um só hora, seja de pão e de vinho ou de luz e de paz? A terra não dá à luz mais entes do que pode alimentar. Os céus não exigem nem furtam a subsistência de seus filhos.

Mentem aqueles que dizem aos seres: "Se queres encher tua arca de prata, tira a vida alheia e herda daquele a quem matas".

Como podem properar com as lágrimas, o sangue e a agonia dos homens, aqueles que não puderam prosperar em seu amor, e no leite e no mel da terra, e na profunda afeição dos céus?

Mentem aqueles que dizem aos homens: "Cada nação por si própria".

Como poderia a centopéia caminhar para frente um só centímetro se cads uma de suas pernas se movesse em uma direção diferente, ou impedisse o progresso das outras, ou planejasse a destruição das outras? Não é por acaso a humanidade um monstro centípede, cujas pernas são as várias nações?

Mente quem diz aos seres: "Governar é uma honra, ser governado é uma vergonha."

Não é o cocheiro guiado pelo burro que o transporta? Não está o carcereiro preso ao dever de vigiar o encarcerado? Na verdade, o burro dirige o cocheiro, e o criminoso prende seu carcereiro.

Mente quem diz aos seres: "Ganha a corrida o mais esperto, o direito pertence ao mais forte".

A vida não é uma corrida disputada com os músculos e a força. O aleijado e o mutilado, muitas vezes, alcançam a vitória muito mais rapidamente do que o sadio, e, as vezes, até um mosquito vence o gladiador.

Mente aquele que diz aos homens que o mal não pode ser corrigido senão pelo mal. Um mal superposto a outro jamais poderá tornar-se um bem. Deixai em sossego o mal, e, em pouco tempo, ele se destruirá a si mesmo.

Mas os homens são crédulos para com a filosofia de seu senhor, o vintém, e seus vorazes abutres; nele acreditam, pia e religiosamente, cumprem suas mais disparatadas fantasias, ao passo que não ouvem a noite, que canta e prega a libertação - nem ao próprio Deus ouvem ou nele confiam. E vós, companheiros, sereis por eles marcados como doidos ou impostores.

Não fiqueis ofendidos com a ingratidão e a dolorosa zombaria dos homens; trabalhei com amor e interminável paciência, para libertá-los de si mesmos e do dilúvio de fogo e de sangue que em breve virá sobre eles.

Já é tempo de os homens pararem de matar os homens.

O sol, a lua e as estrelas estão desde a eternidade esperando aer vistos, ouvidos e compreendidos; o alfabeto da terra aguarda ser decifrado; as estradas do espaço esperam ser viajadas; o fio enredado do tempo aguarda ser desenredado; a fragrância do Universo, ser inalada; as catacumbas da dor, serrm demolidas; a caverna da morte, ser devastada; o pão da Compreensão, ser provado, e o homem, deus enfaixado, ser libertado de suas faixas.

Já é tempo de os homens pararem com a pilhagem dos homens e unirem fileras para levarem à frente a tarefa comum. Imensa é a tarefa, porém doce será a vitória. Tudo o mais, em comparação, é banal e vazio.

Sim, já é tempo. Poucos, todavia, darão ouvidos. Os outros terão de aguardar novo chamado - nova alvorada.